Foi com grande alegria que me deparei com essa tigela de arroz doce no café da manhã de um hotel no Uruguai. O prato me lembra infância e aí não tem jeito: dá saudade da minha vovó Neném e do tempo em que ela me ensinava a cozinhar.
Aprendi tantas delícias com ela. Receitas que sempre fazem parte do meio dia-a-dia, como o tempero verde, o frango com quiabo e angu, a moqueca de surubim e o pudim cor-de-rosa.
Aprendi tantas delícias com ela. Receitas que sempre fazem parte do meio dia-a-dia, como o tempero verde, o frango com quiabo e angu, a moqueca de surubim e o pudim cor-de-rosa.
Graças a Deus ela ainda está viva! Só que agora, com 95 anos, dona "Neném" não cozinha mais. Virou "cobaia" das minhas invenções. Come tudo o que eu faço, sempre com aquela carinha boa e dizendo: "hummm, está uma delícia"!
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A saudade que sinto da minha amada vovó Neném é enorme! |
Nossa, quanta saudade dela! Agora a gente não se vê mais todos os dias. Eu em Brasília e ela em BH. A tecnologia também não ajuda muito. Com a idade, ela ficou praticamente surda e não conseguimos mais nos falar por telefone.
Mas quando chego em Minas é sempre a mesma alegria. E ela pode até não dizer nada, porque já anda mesmo no "mundo da lua". Mas sempre me abraça e pergunta: "o que vai ter de gostoso pra hoje?" Por isso hoje, caro leitor, a receita da famosa iguaria é em homenagem à minha vovó Neném. O doce, diferentemente do que muitos pensam, não é de origem portuguesa.
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Enfeitado ou não, arroz doce é uma delícia. Foto: Pxhere/CreativeCommons.org |
Eu até achava que era e por isso que nem estranhei quando vi a tigela de arroz doce no buffet uruguaio. Pensei: nada mais normal que encontrar uma sobremesa lusitana num país onde a tradição portuguesa, principalmente na culinária, é muito forte, né?
Ledo engano. A ideia de se cozinhar arroz em leite vem da Ásia. Nos casamentos hindus, inclusive, principalmente no norte da Índia, é muito comum servir um arroz feito com açafrão, raspas de coco e frutas secas.
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Arroz árabe, feito com açafrão, raspas de coco e frutas secas. Foto: CreativeCommons.org |
Só que na Ásia o leite usado era o de coco. Quem mudou isso foram os Árabes. Eles conheceram o arroz doce durante as expedições ao norte da Índia, no século VI a.C. O próprio étimo "arroz" vem do árabe "ar-ruzz". Lá no Oriente Médio já se cultivava o grão e com a importação da cana-de-açúcar e a canela vindas da Índia o arroz doce ganhou a cara que tem hoje.
No Oriente Médio a receita do arroz doce caiu no gosto dos Mouros que habitavam o norte na África. Esse povo, de descendência árabe, acabou dando um toque peculiar à receita: água de flor de laranjeira (Maa al zahar) e cascas de laranja.
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A palavra "arroz" vem do árabe "ar-ruz". Foto: Takeaway/CommonsWikimedia.org |
E o prato característico da culinária moura, por muitos séculos, foi produzido dessa forma no continente africano. Até que no ano de 711 os Mouros decidiram invadir a Península Ibérica.
Em apenas dois anos, durante a Batalha de Guadalete, eles decretaram o fim do Reino Visigótigo no sul do que hoje é a Espanha e conquistaram a região. E a Península Ibérica ficaria sob o domínio muçulmano pelos próximos oito séculos.
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Batalha de Guadalete, ano de 711, Península Ibérica. Foto: gravura livro "As Glorias Nacionales". CreativeCommons.org |
E, como em todo processo de dominação, os costumes e tradições do povo Mouro foram disseminados entre portugueses e espanhóis. O arroz doce é, inclusive, um ótimo exemplo dessa influência Árabe. A receita feita com arroz cozido em leite e açúcar chegou no sudoeste da Europa, se popularizou e foi ganhando nova roupagem.
Tanto que quatro séculos depois da chegada dos Mouros a receita já figurava nos principais livros de culinária do Velho Mundo. Na região que no século XII já se chamava Portugal (o país se tornou independente em 1139) o arroz doce virou o queridinho da vez.
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Até o recipiente onde se serve o doce pode deixar o arroz mais interessante. Foto: Pxhere/CreativeCommons.org |
Em 1492 os cristão decretaram o fim do reinado muçulmano na Península Ibérica. O episódio, conhecido por "Reconquista" devolveu o controle dos reinos Portugal e Espanha aos descendentes dos "Visigodos", bárbaros de origem germânica que, por sua vez, tinham tomado a Hispânia dos romanos e ocupado essa região do ano 418 a 711, data da chegada dos Mouros.
Mas nem a derrocada do Reinado Mouro fez ruir a tradição do doce de origem árabe. Os portugueses mantiveram o toque cítrico dado pelos Mouros mas substituíram a laranja pela da casaca do limão. E, assim, o doce chegou ao Brasil. Trazida pelos nossos colonizadores lusitanos, a preparação rapidamente ganhou a "Terra Tupiniquim".
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Os portugueses chegaram aqui com os costumes e receitas também. Foto: CreativeCommons.org |
A receita, inclusive, está documentada no livro "O Cozinheiro Nacional", escrito no final do século XIX. O exemplar, de grande valor histórico, pode ser baixado no site da Biblioteca. Preparação que minha vovó Neném, descendente de portugueses, aprendeu com a avó dela que, por sua vez, aprendeu com a avó. Uma preparação simples que, pra mim, é quase sinônimo de família e que é por isso que gosto tanto de fazer e de comer.
O mesmo aconteceu com a disseminação da receita no Uruguai já que os portugueses também dominaram o país. A Colônia de Sacramento, inclusive, foi, em 1680, a porta de entrada desses colonizadores na região.
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Os portugueses também chegaram em Uruguai. E pelas águas da Colônia de Sacramento. |
E tanto na Europa quanto na América do Sul o arroz doce desempenhou e desempenha um papel importante, principalmente como iguaria típica de festas religiosas.
Difícil ir em umas dessas tradicionais reuniões e não encontrar o doce. E por ter ficado conhecido como o "arroz-de-festa" acabou por dar origem a expressão popular. Aliás, frases gastronômicas criadas por conta de um contexto são sempre uma história bacana.
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Amêndoas podem deixar o seu arroz doce ainda mais saboroso. Foto: Divya Kudua/CreativeCommons.org |
O doce, no entanto, tem uma variedade muito grande na sua forma de confecção. Em Ílhavo, por exemplo, o arroz é preparado só com água, mas no resto de Portugal é comum o preparo do grão com duas cozeduras, uma com água e outra com leite. Aqui no Brasil o arroz, além de leite, ganhou leite condensado (que eu não uso) e até doce de leite na preparação.
A cor também varia. Aqui no Brasil, no Uruguai e em grande parte de Portugal utiliza-se o creme de ovos batido com açúcar, tipo gemada, deixando o prato "amarelinho". Já na região de Coimbra estes não são usados, e o arroz fica branco mesmo. Ou seja, cada um tem uma receita e um jeito diferente de prepará-lo.
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Com açúcar, pra mim, é mais saboroso que com leite condensado. Foto: Pxhere/CreativeCommons.org |
Mas uma coisa é unanimidade: o doce é bom de qualquer jeito. Servido quente ou frio, com frutas ou puro, com açúcar ou leite condensado, com o sem ovo, o arroz doce agrada. E por ser muito fácil de fazer, pode ser sua próxima experiência culinária.
Anote aí os itens necessários para fazer uma receita de arroz doce que serve bem duas pessoas:
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O arroz doce foi uma das melhores surpresas do meu café da manhã em Montevidéu, no Uruguai. |
- Ingredientes:
. 1 litro de água
. 250 gramas de arroz branco tipo Arbóreo ou Canaroli
. 1 pau de canela
. 250 gramas de açúcar refinado ou cristal
. 1 litro de leite
. 3 gemas de ovos
. casca de limão Taiti ou Siciliano
. uma pitada de sal
. canela em pó para decorar
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Sem ovo eu acho que o arroz fica branco demais. Foto: Purdman1/CreativeCommons.org |
- Modo de fazer:
. Leve ao fogo uma panela com a água, o pau de canela, o açúcar, o arroz e uma pitada de sal. Deixe cozinhar até o arroz incorporar quase toda a água.
. Em uma tigela, bata as gemas acrescentando um pouco do arroz al dente para as gemas não talharem. Com o fogo desligado, incorpore as gemas ao arroz.
. Acrescente o leite e a casca do limão. Misture bem. Abaixe o fogo e deixe as gemas e o leite cozinharem juntamente com o arroz.
. Com o arroz cozido, retire o pau de canela e a casca do limão. Sirva o arroz doce quente ou frio, polvilhado com canela em pó.
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Vovó Neném, um dos maiores amores da minha vida. Amo demais! |
Um ótimo lanche em família para todos nós.
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